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Orçamento do descontentamento!

O debate nacional do momento é a rejeição do Orçamento de Estado e a anunciada, por antecipação, dissolução do parlamento. Na verdade, a concretizar-se esta interrupção parlamentar será por opção do Presidente da República e não por obrigação constitucional.

Porque também votei contra este OE deve-se-me uma explicação aos eleitores do meu distrito e particularmente aos que votaram no BE e que me elegeram. Entendo a frustração, a angústia, os receios de muitos desses eleitores. Partilho dessas preocupações. Sei muito bem que esta opção de eleições antecipadas não é a desejável para o país e não favorece o necessário reequilíbrio pós-pandémico, se assim podemos chamar. Mas a questão que também temos de discutir é a de saber se este OE responde aos problemas imediatos, se comporta medidas socialmente justas e economicamente equilibradoras, se repõe direitos e valoriza o trabalho, se tem visão estrutural de desenvolvimento. Sinceramente, penso que nenhuma destas perspetivas está contida no documento em apreço. Limita-se a uma espécie de compilação de remendos circunstanciais, e mesmo aí não responde aos problemas mais prementes nem às injustiças mais gritantes. Não tem visão de horizonte alargado e de futuro e em nada enfrenta os alicerces estruturais herdados da Troika. Um orçamento de esquerda tem de responder à esquerda. O BE votou contra, depois de auscultadas as estruturas regionais e locais do partido e da ratificação largamente maioritária do órgão máximo (Mesa Nacional), exatamente por considerar que este não é um OE de esquerda. À semelhança do ano anterior, em que também foi essa a avaliação, não podíamos viabilizar um documento estratégico que em nada se define quanto à estratégia e que propositadamente fica pela encenação mediática do agora é que vai ser, quando até agora nunca foi o que volta a ser prometido. É que para além de não identificar devidamente os reais problemas, não atribuiu verbas suficientes para a execução do proposto nem apresenta garantias de que as promessas incluídas são concretizáveis. Atendendo a factos concretos de últimos orçamentos, esta diferença entre o anunciado e não executado transformou-se numa fraude. Tome-se por exemplo o caso dos cuidadores informais, sucessivamente prometido e com execução de 1% nos últimos dois anos.

Há obviamente razões válidas para se discordar do voto do Bloco e há um espaço critico em aberto sobre as opções para negociação. Mas há algumas acusações que o PS e o Governo orquestradamente encenam que são de todo inaceitáveis e revelam má-fé de tática partidária. Dizerem que votamos ao lado da direita é distorcer o argumentário. O somatório das partes deu o resultado da rejeição, mas as razões de fundamento de cada uma das partes são exatamente contrárias. Não nos revemos neste OE por não ser o que o país precisa e por falta de respostas à esquerda.

Dizer que o BE não quis fazer acordo e foi inflexível nas negociações, é adulterar o debate e obstaculizar fundamentos sérios de consideração. Negociar não é impor um programa e pedir para fazer pequenas retificações. O OE é da responsabilidade do governo. Neste caso o governo precisa de entendimentos para o viabilizar. Assim, a negociação faz-se no respeito das partes e pela criação de condições para o acordo. O BE negociou com toda a abertura e tornou pública as suas reivindicações – documento das nove propostas nas áreas da Saúde, Trabalho e Segurança Social, que partem de projetos já apresentados na Assembleia da República, algumas já anteriormente defendidas pelo PS. O Governo rejeitou todas as propostas com argumentos vários entre os quais o falacioso princípio de que não eram matérias para discutir em sede de orçamento. Que documento mais orientador de intervenção política para assegurar a recuperação de direitos nas leis laborais e garantir a anulação de cortes derivados da austeridade da Troika? Que documento mais estratégico para orçamentar verbas para a reabilitação de serviços públicos e investimento sério para o SNS, Escola Pública e Segurança Social? Sejamos claros, um OE é uma manifestação de opções políticas.

Dizer que o sentido de voto resulta de um cálculo eleitoral é inverter os papeis. A haver eleições o BE poderá ser eleitoralmente prejudicado devido ao ataque sórdido de culpabilização da situação. Ao contrário, o PS, particularmente António Costa, irá jogar a obsessiva cartada da maioria absoluta numa campanha de vitimização do governo, suportada por uma máquina publicitária de ilusionismo propagandista pela apologia da governação unívoca. A comprovar o contrário temos o histórico recente das últimas maiorias. O BE só comprovou que os valores em que acredita e fundamenta o programa eleitoral sufragado  pelos eleitores, não está à venda e serve sempre de guião para a intervenção politica.

Dizer que o BE matou a geringonça e a esperança de um governo de esquerda é camuflar realidades e “tapar o sol com a peneira”. A geringonça acabou em Outubro de 2019 quando António Costa não quis assumir um compromisso escrito de governação, proposto pelo BE, à semelhança do que tinha sucedido nos quatro anos anteriores, dos quais o BE se orgulha de ter contribuído para a inversão da politica de direita subjugada à Troika. Em 2019 a estratégia de António Costa foi a de não ter nenhum compromisso estável com a esquerda, podendo escolher fazer alianças parlamentares “à La Carte” e aprovar orçamentos sem incorporar reivindicações de esquerda, bradando com a chantagem de crise política. A este propósito registe-se o que aconteceu no Parlamento nos últimos dois anos. O PS, ao mesmo tempo que invocava o "espírito da geringonça” votou muitas mais vezes com o PSD, o CDS e com a IL do que com o Bloco e o PCP. São dados objetivos de consulta pública.

Tendo como certo que o PR optará pela compressão que ele próprio criou – eleições antecipadas - que cenários se colocam ao povo de esquerda? Embarcar na ardilosa estratégia  de António Costa e concentrar votos para que o PS governe com rédea solta liberto das exigências de esquerda?

Carpir mágoas de desalento e de desacreditação na política e engrossar as fileiras da abstenção deixando as decisões para os que são contrários a nós?

Reforçar a esquerda de confiança dando mais força e maior capacidade de negociação com uma agenda que responda aos reais problemas da população, que valorize e dignifique o trabalho, que invista efetivamente nos serviços públicos melhorando a qualidade de vida coletiva. Tudo farei para que esta seja a opção mais escolhida.